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Estela

A fera sorrateira sentiu minha aproximação pelo cheiro. No girar da chave ouvi seu pulo preciso. Deu três leves passos sobre os livros na escrivaninha e se preparou para o bote. Antes abrir a porta, percebi sua intenção de me surpreender num ataque silencioso. Ela estava ali, junto à entrada do escritório, à altura de minha mão, com suas lâminas à mostra.  Um gesto imprudente e suas unhas rasgariam outra vez minha pele...


Voltei à área de serviço e apanhei uma vassoura. Fiz como da vez anterior: mão esquerda firmada na porta entreaberta, a direita agarrada ao cabo da vassoura, na tentativa de conter a fera, enquanto meu pé empurrava os potes de água e ração escritório adentro.


Passei novamente os olhos sobre os títulos na estante ao fundo. Em vão, não conseguia encontrar o livro.  Fechei a porta e expirei a tensão presa nos pulmões. “Merda, caí em minha própria armadilha”, pensei.


Trabalhei um tanto no computador e liguei para uma amiga. Antes de me deitar, fui ao banheiro. No dia seguinte daria aula com aquele risco vermelho no meio do nariz. E não havia nada que servisse de disfarce, nem band-aid cor de pele. “Foda-se”. Tinha outros arranhões. Dois no dorso da mão direita, um no antebraço esquerdo, um no tornozelo e outro na barriga. Perguntariam “o que houve?” e qualquer outra resposta seria tão patética quanto à própria realidade. “Foi a Estela...”.


Estela chegou no colo do André, um amigo meu. Gata linda, preta, com manchas marrons. Olhar indefeso e dócil... aparentemente. Passaria 3 dias comigo para que seus donos curtissem uma folga no litoral. Não era uma semana agitada para mim. Compromissos habituais na universidade, como bancas e reuniões e um artigo por finalizar. Nada que os cuidados com uma gata dorminhoca pudessem comprometer.


Depois de breve instruções sobre a caixa de areia, comidas, cookies, etc, André demonstrou certa pressa. Tentei pegar a gata das mãos dele e então ouvi aquele som ao qual me familiarizei naqueles dias. Era como uma serpente a expelir seu veneno, um ruído que eu desconhecia até então. Meu amigo a apertou e fez um “shh” carinhoso. Depois tirou de um saco um biscoitinho para acalmá-la.


“Ela é meio arisca”, ele disse.

“Tranquilo”, pensei, com uma ponta de aflição.

 

Pedi a ele que a soltasse no chão. Aos poucos ela ia se acostumar com o espaço. E este foi meu primeiro erro. Assim que André saiu, acuada, Estela buscou refúgio debaixo do sofá. Tratei de deixar a comida e a água ali mesmo na sala e segui para o trabalho. Melhor era continuar o bendito texto do artigo na universidade.


Tarde inteira diante do computador... Da universidade, estiquei um happy hour com uma amiga. Me esqueci da Estela. Quando voltei, entrei cambaleante, abrindo os primeiros botões da camisa, imaginando ainda que a casa fosse minha. Este foi meu segundo erro.


No escuro, senti um rápido deslocamento de ar à frente do meu rosto. Algo tinha riscado meu nariz. Acendi a luz e a pantera, em cima do aparador, mostrou os dentes e soltou aquele som da serpente. Meu coração palpitou. Tinha que ir ao banheiro. Estava apertado e o nariz gotejava sangue.


A cozinha e a área de serviço eram o único acesso possível. Peguei a vassoura para me garantir uma distância segura. Vi que a bichana também tinha medo. Então bati com força meu pé no chão e ela correu para debaixo do sofá novamente. Assim pude me trancar no banheiro.


No espelho, meu rosto se manchava de vermelho. Lavei o nariz e notei a profundidade do arranhão. A unha, fina como navalha, enterrara-se na pele que ainda sangrava.


Descalço, voltei à cozinha e, ao ladear o sofá, vi sua pata preta pegar meu tornozelo. Mais um risco de sangue. Tinha que dar um jeito de levar a fera ao escritório e trancá-la lá mesmo. Ia se sentir menos ameaçada... e eu também. Enchi uma garrafa d’água. Dei um salto longo ao me aproximar do sofá e me fechei no quarto. Agora sangue escorria pelo tornozelo e manchava o lençol.


Na manhã seguinte, saí devidamente vestido do quarto para o banheiro e do banheiro direto pra rua. O café foi na padaria. Depois, mergulharia no texto mais uma vez. E de novo na universidade, obviamente, porque a Estela... a Estela me impelia. Não ter a estante de livros ao meu alcance tornara-se um problema. Mas a fera seria uma questão apenas para depois do almoço.


À tarde, cheguei de mansinho no apê. Pisei leve no chão e não ouvi nada. Mas tinha sensação de ser espreitado. A besta invisível me olhava de algum canto. O ar se preenchia de um silêncio, dando a impressão de que Estela me surpreenderia de qualquer lugar.


Entrei pela cozinha, arranquei minha camisa suada, desatando vagarosamente os botões. Examinei a área de serviço antes de lançar a peça de roupa no cesto. Nada de Estela. Abri a geladeira e virei um copo de água gelada. Fui à sala e me deitei de bruços para verificar se a bicha ainda estava debaixo do sofá. Nada também. “Ela deve ter se aboletado no escritório”. Meu quarto e o banheiro estavam fechados. Mas o escritório parecia intocado. Por um instante, senti ter reconquistado meu espaço. Só que o problema agora era outro: “onde foi parar a gata?”


Sentei-me displicente no sofá e, do nada, ouvi o terrível assovio da serpente. Mal tive tempo de sacar de onde o barulho vinha, a pata de Estela irrompeu de um buraco entre as almofadas e cravou em minha barriga. Ela se amotinara no sofá. Dentro dele! Mais precisamente, no vão entre os assentos e o forro. Respirava pelo buraco de onde emergira sua patada cortante.


Calculei o risco de sua permanência ali. O calor agravava a situação e a gata poderia morrer sufocada. Envolvi um pano de prato na mão direita e a enfiei no buraco na tentativa de puxar a bichana. Ganhei mais arranhões nas mãos e no antebraço. Estela não podia permanecer lá. Se morresse, seria sob minha guarda. Ela precisava sair.


O sofá compunha-se de duas peças conjugadas. Desatei-as e, assim, liberei um vão para Estela sair. “Agora ela vem”. Dispus à sua frente os biscoitinhos que ela apreciava. De repente, do buraco escuro, surgiram duas pequenas bolas verdes iluminadas. Parou à saída e pela primeira vez trocamos olhares. Era um olhar de besta fera, desejo puro de matar. Mas em um canto o verde dos olhos turvava em comoção e desamparo. Entre Stella e Blanche Dubois, as duas famosas irmãs do cinema, a gata era mais a segunda. Trazia desta o amálgama da ferocidade, do medo e da loucura.


Estela então exibiu os dentes fazendo o tal barulho de víbora mortal. Mostrava-se agressiva, porém acuada pelo cheiro do estranho que era eu. Afastei-me e ela resolveu se desentocar. Devia ter fome. Enfiei a mão no saco e enfileirei as guloseimas no chão até o escritório. Ela seguiu mansamente, devorando um a um os biscoitinhos. Fechei a porta, enfim.


Juntei as partes do sofá, fiz uma boa faxina na sala e tomei posse do ambiente que havia perdido.


Dois problemas surgiram de imediato. Primeiro: colocar a comida e a água no escritório. A gata era arisca, rápida, silenciosa e tinha as unhas afiadas. Eu precisava ser ágil. Segundo: pegar um livro na estante ao fundo do cômodo. Havia me esquecido do bendito livro antes de conduzir Estela ao seu novo espaço. Este foi meu terceiro erro.  Dependia de uma breve citação para concluir o artigo. O prazo para o envio era meia-noite. E me apossar daquele volume era a tarefa mais dura, certamente. Exigiria uma declaração de guerra a Estela e a ocupação “militar” de um território que já era dela. Ponderei a necessidade de soltá-la novamente. Não valia a pena.

Agora chegamos ao ponto inicial dessa história em que espio os títulos da estante pela fresta da porta, depois de empurrar os potes de água e ração com os pés.


Decidi procurar um PDF do livro na internet. Tem tudo lá, afinal... ou quase tudo. Vasculhei sites de compartilhamento de pirataria e percebi o quão obscuro e raro era o autor cujas palavras enfeitariam meu artigo. Nem mesmo jogando aleatoriamente os termos que supunha aparecer no texto original logrei encontrar a citação.


Lembrei-me que a Bianca, colega da universidade, tinha o livro. Havíamos conversado sobre o autor num café. Mandei a ela uma mensagem de texto, mas duas horas depois... sem visualização ainda. “Se deixar, Bianca só vai ver semana que vem”. Ela era um pouco devagar nas redes. Já passava das 22hs e resolvi cometer um crime: fazer uma ligação, algo reprovável e tacitamente proibido neste mundo em que todos se habituaram aos aplicativos de mensagens.


Liguei.


“Oi”, atendeu uma voz masculina. Namorado, provavelmente.

“Este telefone é da Bianca?”, perguntei.

“Um minuto”.


Havia música alta no fundo. Parecia estar numa festa.


“Alô”

“Bianca, é o Gustavo...”

 "Oiii!”

 “Então, preciso de um imenso favor...”


O sinal da ligação começou a falhar. Desliguei e liguei novamente. Bianca atendeu e a música permanecia alta. No fundo, escutei o cara dizer: “Porra, bem no meu aniversário”.

Sucumbi às circunstâncias.


“Bianca, não é nada importante. Amanhã falo contigo”.

 

As alternativas se esgotavam.


Restava-me escolher, de um lado, a paz e o conforto noturno, ou, do outro, o artigo. Optei por mandar um foda-se para a citação. Tentei recompor o pensamento do famigerado autor do meu jeito. Não era o ideal, mas era o que eu podia e fui dormir resignado.


Acordei com o toque do interfone. André vinha buscar a Estela. Assim que abri a porta, ele me olhou e riu.

"Acho que a Estela deixou uma marca em seu nariz”.

"De boa”, minimizei. “Tivemos uma pequena discussão”, completei. E ele riu mais uma vez.


Evitei um relato longo da lida com Estela e avisei que ele precisava entrar sozinho no escritório e arrumar as coisas.


André saiu com Estela aconchegada em seus braços. Parecia um bebê. E pela última vez ela me olhou. Desta vez, olhar de gato de botas.


O saldo daqueles dias: arranhões pelo corpo, um artigo meio manco e a antipatia gratuita do namorado da Bianca.


Antes de sair para aula, fui até a estante em busca do tal livro. Inspecionei uma a uma as lombadas sem sucesso. Voltei-me para a escrivaninha que ficava ao lado da porta. O livro repousava visivelmente sobre ela, ao alcance de quem se dispusesse sob o umbral da porta. Não quis acreditar. Ao pegá-lo, notei-o úmido. Levei-o a meio metro do nariz... era mijo de Estela.


"Esteeelaaaa!”.


Gato, art nouveau de Teophile Steilen

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