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Para esgotar com os adjetivos

Escrevi esse editorial no final de 2020 para o jornal laboratório A Borda que criei junto com meu amigo Gutemberg Medeiros (os alunos amavam nos fotografar enquanto tomávamos cafezinho em algum intervalo que náo tínhamos aula). Tirando um ou outro detalhe, a medula do texto continua valendo (possivelmente ninguém leu na época, então vou republicá-lo aqui):


Imagem gerada por IA de mim tomando cafezinho com o Gutemberg


Que ano difícil! Arrebentado. Engasgado. Temeroso. Trágico. Assustador. Ridículo. Vil. Enfadonho. Solitário. Infeliz. Atribulado. Nervoso. Obscuro. Insatisfatório. Aberrante. Hediondo. Fragmentado. Inerte. Ruim. Trôpego. Torpe. Indigesto. Inútil. Insípido. Enfadonho. Maçante. Estéril. Complicado. Bizarro. Decepcionante. Truncado. Enlutado. Isolado. Rarefeito. Ralo. Vazio. Avesso. Instável. Mesquinho. Catatônico. Extenuante. Esquisito. Azedo. Lento. Torturante. Feio. Desolado. Infértil. Infectado. Impotente. Desfigurado. Rasurado. Incômodo. Insano. Enfermo. Mórbido. Melancólico. Desbotado. Árduo. Desprezível. Precário. Decepcionante. Enroscado. Paralisado. Hipócrita. Encalhado. Covarde. Embotado. À deriva. Nulo. Apagado. Angustiado. Atravessado. Emperrado. Travado. Claudicante. Amargo. Doído. Hostil. Chato. Incompleto. Frustrante. Lacônico. Opaco. Corroído. Fraco. Arrasado. Desértico. Monótono. Débil. Insalubre. Sombrio. Perverso. Anormal. Vulgar. Esdrúxulo. Repulsivo. Grotesco. Fosco. Desagradável. Funesto. Soturno. Desafortunado. Desastroso. Miserável. Pestilento. Adverso. Ameaçador. Irritante. Cansativo. Contraproducente. Nefasto. Pernicioso. Tóxico. Peçonhento. Deletério. Patológico. Sinistro. Macabro. Catastrófico. Doloroso. Calamitoso. Agourento. Letal. Danoso. Atrapalhado. Confuso. Grave. Duro. Espinhoso. Acidentado. Intolerável. Atroz. Inconcebível. Impiedoso. Estranho. Traiçoeiro. Arriscado.

Seria só isso tudo não fossem os pequenos gestos daqueles poucos que não desligaram as suas câmeras. Os que entenderam os tropeços (os próprios e os dos demais). Todos aqueles que não desapareceram na indiferença do menosprezo. Os que não banalizaram o mal. Os que não desistiram. Os que enfrentaram. Os que se arriscaram. Os que lutaram. Os que denunciaram as sombras. Todos os que não abandonaram a compaixão como horizonte. Aqueles para os quais a diferença sorri em cada instante num devir, mesmo que encarcerados por detrás de uma cela de pixels. Da adversidade, vivemos. Criamos. Resistimos. Sobrevivemos. Sozinhos mas polinizados pelo acaso. A chance. O possível.

E assim termina 2020, mesmo que engolindo metade do ano seguinte e ainda por debaixo da ameaça invisível de um vírus. Por todos aqueles que até aqui não chegaram valeu o empenho, a paciência e a força. A Borda é um exercício de ir aos limites. A fronteira como abertura para o outro. Até mesmo quando o outro inexiste. Inventa-se outros outros. Parabéns a todos os que se formam agora. Força aos que precisaram de um pouco mais de tempo. É um privilégio estar vivo e seguir adiante. É suficiente. É maravilhoso.

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