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O que você sabe sobre o feminismo chinês?


Costuma-se marcar o início do feminismo chinês com o lançamento do livro “Nüjie zhong” (O Sino das Mulheres), publicado em 1903 por Jin Tianhe (também conhecido por Jin Yi), um homem progressista. Na introdução do livro “The Birth of Chinese Feminism”, as editoras Lydia H. Liu, Rebecca E. Karl e Dorothy Ko apontam duas peculiaridades neste fato: não apenas o início do feminismo chinês descende de um homem, mas seu manifesto traz como preâmbulo uma melancolia masculina, uma espécie de inveja dos homens ocidentais. Cito a tradução deste trecho d’O Sino das Mulheres:

A estação chuvosa e abafada com suas garoas intermináveis é sufocante. Os lótus caem na brisa quente e entorpecida. As árvores estão apáticas, e as distantes colinas, adormecidas. No extremo leste do continente asiático, num país que não conhece a liberdade, numa pequena sala que não conhece a liberdade, a minha respiração está pesada, a minha mente fica lenta. Quero deixar entrar o ar fresco da civilização europeia, atraí-lo para restaurar o meu corpo.

Sonho com um jovem europeu branco. Neste dia, nesta hora, com com um cigarro enrolado na boca, bengala na mão, esposa e filhos ao lado, ele caminha com a cabeça erguida e os braços balançando ao lado do corpo pelas avenidas de Londres, Paris, Washington. Tanta felicidade e facilidade! Eu gostaria de poder ir lá sozinho.

Quem primeiro, e mais duramente, respondeu a esta visão masculina do feminismo foi uma mulher chamada He-Yin Zhen. Ela tomava pessoas como Jin Tianhe como aliados, mas não os poupava de críticas. Da mesma forma, He-Yin mostrava uma consciência impressionante dos movimentos pelo sufrágio feminino na Europa e na América do Norte, bem como as condições de subsistência das mulheres no Japão industrializado, e as lutas anarquistas e socialistas em todo o mundo. He-Yin não atacava ferozmente apenas os homens que embandeiraram uma luta liberal pelo direito das mulheres, mas também as próprias mulheres que não desenvolviam uma crítica global sistemática das bases políticas, econômicas, morais e ideológicas da sociedade patriarcal. Em outras palavras, o movimento sufragista, para He-Yin era insuficiente, na medida que não era revolucionário. Para ela, “a luta feminista não deveria ser subordinada a lutas que promovessem as agendas de modernização nacionalista, etnocêntrica ou capitalista; o início e o fim de uma revolução social total é o que aboliria o Estado e a propriedade privada, para trazer a verdadeira igualdade social e o fim de todas as hierarquias sociais.” (Lydia H. Liu, Rebecca E. Karl e Dorothy Ko).


He-Yin Zhen criou seu próprio jornal em 1907, o Tien Yee (Tianyi bao), ou Justiça Natural. Tratava-se de um veículo de tendência anarquista, que apesar de ter durado pouco mais de um ano, teve participação singular no cenário político: foi o primeiro a publicar trechos do Manifesto Comunista na China; se tornou a publicação oficial da Sociedade para a Restauração dos Direitos da Mulher, em Tóquio; e divulgou as principais análises de He-Yin.


Trago essas breves pinceladas sobre o trabalho de He-Yin Zhen, pois em 2024 a editora Faísca lançará um compêndio com seus principais escritos: “Sobre a libertação das mulheres”, “Sobre o trabalho da mulher”, "Revolução econômica e revolução das mulheres”, "Sobre a Vingança das Mulheres", “Sobre o antimilitarismo feminista”, e “Manifesto Feminista”. Tive a honra e a responsabilidade de traduzir He-Yin Zhen do inglês, após um trabalho impressionante das tradutoras e editoras Lydia H. Liu, Rebecca E. Karl e Dorothy Ko, em livro que saiu pela Columbia University Press.


Além de fazer uma ponte entre passado e presente, já que He-Yin Zhen desenvolveu categorias de análise que em muito contribuem para pensar pautas atuais de identidade, gênero e classe; o livro também tem o mérito de conectar lutas geograficamente distantes, e que justo por isso se encontram em diferentes estágios de rusgas. He-Yin Zhen é esta ponte que conecta realidades e tempos, e já passou da hora de ser lida e analisada.

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